Sem
dúvida, o lugar mais assombrado do Recife chama-se Cruz do Patrão. Fica onde
antes existia um istmo que ligava o Recife a Olinda, às margens do Rio
Beberibe. É uma coluna de alvenaria, erigida não se sabe precisamente quando,
entre as fortalezas do Brum e do Buraco. Servia de baliza para os barcos que
chegavam para atracar. E tornou-se ponto de encontro com almas penadas...
Pode
ter sido construída a mando do patrão-mor do porto, cargo que já existia em
1654. Sabe-se que, além de marco de navegação, a Cruz tinha outras funções. Lá
eram enterrados os negros pagãos mortos durante as viagens nos navios vindos da
África. A areia da maré facilitava esses sepultamentos improvisados. Ficou
célebre relato da inglesa Maria Graham, que viu pedaços de corpos em volta do
marco .
Certamente
os espíritos dos escravos arrancados de sua terra natal para perecer na jornada
rumo ao cativeiro ainda vagueiam pela noite, presos pelos grilhões da
injustiça. Até o século XIX, no local também eram fuzilados os militares condenados
à pena capital, como o soldado João Luís dos Santos, do 1º Batalhão de
Fuzileiros. Ele sucumbiu diante da saraivada de balas desferida pelos seus
companheiros de farda em quatro de maio de 1850, na presença de "numerosa
porção de povo", como registrou na época o Diário de Pernambuco.
Segundo
o escritor Franklin Távora, autor de "O Cabeleira", acreditava-se que
todo aquele que passasse pelas imediações da Cruz do Patrão à noite veria almas
penadas ou seria perseguido por terríveis espíritos. Muitos dos que o fizeram
desapareceram sem deixar traços. No livro "O Esqueleto", o romancista
Carneiro Vilela transformou aquele sítio lúgubre em cenário para o encontro do
personagem Felipe com sua noiva Lívia. O detalhe é que a reunião romântica se deu
depois da morte da moça.
E no
local ocorreram fatos trágicos que superam a perversidade concebida pela
ficção. Conta-se de um estudante foi encontrado assassinado junto à Cruz.
Culpou-se um soldado, que foi preso e mandado para Fernando de Noronha. Tempos
depois descobriu-se que o culpado seria outro indivíduo, que cometera o crime
animado por um "espírito infernal". Mas a revelação chegou tarde:
soldado acabou morrendo na prisão da ilha.
Por
essas e outras, muita gente preferia o caminho mais longo entre Olinda e
Recife, evitando passar pelo istmo guardado pela a Cruz do Patrão. Isso tornava
o lugar um ponto ideal para reuniões de feiticeiros praticantes das artes
mágicas vindas do continente africano. Os encontros aconteciam principalmente
nas noites de São João. Conforme relatos da época, um desses festejos teve como
ápice o aparecimento do próprio Exu , figura com olhos de fogo e preto feito
carvão. O espírito dirigiu suas atenções a uma moça que participava do culto e
a perseguiu até o rio Beberibe, onde ela se atirou.
De
acordo com Franklin Távora, o relator desse bizarro episódio, "enganado
pela vista dos mangues, o demônio atirou-se após a fugitiva, julgando entrar em
uma floresta. Assim porém que o corpo ígneo se pôs em contato com as águas
frias houve uma súbita explosão destruiu o furioso animal. O estampido ribombou
como descarga elétrica. Nuvem de fumo espesso, que tresandou a enxofre, cobriu
a face do Beberibe. No outro dia, na baixa-mar , apareceu no lugar onde a negra
tinha afundado, não o seu corpo, mas a coroa preta que indicou aí por diante
aos feiticeiros a vingança do espírito das trevas".
No
século XX, a Cruz ainda fez outras vítimas.Veja, por exemplo esta nota
publicada pelo jornal A Província em 15 de setembro de 1929, sob o título
"Na Cruz do Patrão, um marítimo morreu afogado"
"Na
Aldeia do Brum, bairro do Recife, residia Cyriaco de Almeida Catanho, remador
da praticagem da barra. Pela manhã de ontem, cerca de seis horas, aquele
marítimo deixou a sua residência indo banhar-se na Cruz do Patrão, local onde
várias pessoas têm morrido afogadas (grifo nosso). Em certa altura do banho,
alguns companheiros de Cyriaco Catanho que se encontravam nas proximidades da
Cruz do Patrão observaram ele pedir socorro. É que a sua vida perigava.
Trataram de dar os socorros solicitados. Infelizmente, porém, estes não deram o
resultado esperado. Cyriaco Catanho havia se submergido. Comunicado o fato à
Polícia Marítima, foram iniciadas as pesquisas para o fim de ser encontrado o
cadáver. A polícia do Primeiro Distrito também tomou conhecimento da
ocorrência. O morto era casado e deixou um filho de dois meses de idade."
A
Cruz do Patrão resistiu ao tempo, às investidas da maresia, à falta de cuidado
que o homem tem com suas antigas construções . E, no novo milênio cristão, ela
permanece, impávida, adornado com a sua beleza austera a área do Porto do
Recife. Pode ser vista por quem passa na Ponte do Limoeiro, embora poucos
saibam o que ela representa. O esquecimento a que está submetida seria obra dos
espíritos malignos e alma penadas que habitam o lugar? Ou seria conseqüência do
nosso descaso com os monumentos que preservam muito da história da cidade?
E-mail: apocalipsedosanjos@hotmail.com
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